25 de out. de 2012

Um mundo reencantado

 

Em edição caprichada, Cosac Naify lança a primeiríssima e nada convencional versão dos contos de Grimm

Luiz Costa Pereira Junior

Rapunzel está grávida. A princesa não beija o sapo. Cinderela perde o baile. A rainha má é a mãe, não a madrasta de Branca de Neve. Dois lobos tentam comer Chapeuzinho Vermelho. Livres da bruxa, João e Maria finalmente voltam pra casa. Tarde demais: sua mãe está morta.

Não, não se trata de mais um filme da franquia Shrek ou da enésima releitura de clássicos infantis na indústria cultural. A nova tradução da mais antiga versão de Kinder und Hausmärchen, os contos maravilhosos editados pelos irmãos Grimm no século 19, promete tirar o pó que os próprios Grimm colocaram na obra que os consagrou.

Contos Maravilhosos Infantis e Domésticos, lançado este outubro de 2012 pela editora Cosac Naify em dois tomos, com tradução de Christine Röhrig, apresentação de Marcus Mazzari e xilogravuras de J. Borges, mostra na prática que não se faz infância como antigamente.

Com heróis desagradáveis, reis cruéis e princesas infames, matriarcas de afetos implacáveis e finais nem sempre felizes, as histórias de Jacob (1785-1863) e Wilhelm Grimm (1786-1859) regurgitaram a tradição oral da Alemanha do século 19, em que o fantástico emergia em doses tão cavalares quanto a violência, o humor negro e a pulsão sexual.

A primeira versão do clássico é de 1812, com 86 histórias colhidas no estado de Hessen (onde o rio Meno - Main, em alemão - corta Frankfurt) então ocupado por Napoleão. Os Grimm a criaram para a leitura de estudiosos do folclore alemão. Para a surpresa da dupla, no entanto, sua compilação começou a ser lida por pais que queriam entreter os filhos (não só na Alemanha, mas na Dinamarca de 1816 e na Holanda de 1820, informa Mazzari). 

Alemanha profunda
O inesperado sucesso provocou reedições e sucessivas mudanças no conteúdo. Em vida, os Grimm publicaram 17 versões da obra.

Não era procedimento incomum. Contos de fadas são um gênero permeável a recriações. Nós nos acostumamos a pensá-los como fruto da isenção de pesquisadores que desbravam, no caldo anônimo da cultura folclórica, um conjunto de narrativas fechadas em si mesmas. Mas as histórias de boca em boca formam antes um sistema lógico de alta elasticidade, em que várias narrativas se misturam, sem autoria fixa e em combinações variadas.

A edição da Cosac Naify mostra que esse arranjo em caleidoscópio, com mudanças ao gosto do freguês e dos valores de época, ocorre também por escrito. Entre autoral e documental, a compilação dos Grimm passou por um pente fino de estilo. A dupla padronizou a forma de contar, preencheu lacunas e suavizou contradições internas das histórias. Acima de tudo, a nova tradução revela que alguns dos mais famosos contos maravilhosos se fixaram por escrito após sucessivos filtros morais.

A moral burguesa dos Grimm atenuou a tendência chula e mundana da Alemanha profunda já na 2ª edição, de 1819, que teve 72 histórias além das publicadas na amostra anterior (a 3ª, de 1822, consolidaria o total de 158 textos, que foi a base para a atual edição brasileira).

A cada variação, os Grimm atenuavam a violência das cenas e a sexualidade de personagens, ou decantavam humores que iam da misoginia gratuita ao antissemitismo.

Muita coisa ficou diferente da 1a versão que chega agora ao Brasil. A mãe de Branca de Neve era a rainha má antes de os Grimm darem à madrasta o papel de algoz: não se bota, afinal, a mãe no meio. Rapunzel joga as tranças para o príncipe subir à torre: não ficarão ali a beber e conversar. A filha do rei promete cuidar do sapo, esquece o trato e é obrigada pelo pai a cumprir a palavra. Pitiática, espatifa o bicho na parede. É aí que ele vira príncipe. Não há beijo na cena, mas os dois passam a noite, não consta que a beber e conversar.

Passagens do gênero renascem na edição da Cosac Naify, que teve a brilhante e cotovelar sacada de convidar um artista popular como J. Borges para dar ao folclore alemão a graça visual de nossa tradição nordestina: suas xilogravuras ecoam a oralidade rural recuperada pelos Grimm, como se o original estivesse gravado em madeira brasileira.

Mundo mágico
A tradição oral que fundou os contos de fadas dava explicações mágicas a problemas de fertilidade e a mistérios da natureza. Ecoava regras morais rígidas, descrevia a desumanidade cotidiana da vida rural ou servia de modelos para rituais de passagem. Com o tempo, falou mais alto a tendência de usar as histórias na educação infantil.

Como os mitos gregos, que mudavam de configuração em cada cidade grega antiga, é improvável que cada conto popular tenha uma única e homogênea formulação. Coletâneas como a do italiano Giovanni Strapardia (1480-1557), por exemplo, continham histórias como Sr. Dito e Feito, narrada pelos Grimm. O francês Charles Perrault (1628-1703) também reunira, em Contos da Mamãe Gansa (1697), algumas narrativas recuperadas depois pelos Grimm, como Chapeuzinho Vermelho, O Pequeno Polegar, O Gato de Botas e A Bela Adormecida. Elas são do tempo da primeira transcrição da história deBranca de Neve, diz Alexandre Callari, organizador de Branca de Neve - Os contos clássicos(editora Generale, 2012).

Modelos
É de Giambattista Basile (1575-1632), conde de Torrone, na Itália, a autoria de A Jovem Escrava, recolhida entre Creta e Veneza, e publicada em Pentamerone (1634-36). Afeita ao espírito popular, sua versão mostra que a maldade da rainha fica sem punição. Mas há versões de todo tipo, diz Callari: com o rei psicopata e necrófilo (O Caixão de Cristal, de Thomas Frederick Crane, 1885) e até a da morte dos anões (de Ernst Ludwig Rochholz, 1856).

O crítico Wladimir Propp viu nesse tipo de conto certos elementos narrativos que não variavam. A graça da coisa, disse o russo, seria perceber a grandeza do caráter variado das histórias, que camuflava a uniformidade e a repetição de motivos e tipos (Morfologia do Conto Maravilhoso, 2006: 22). Os contos de fadas atualizam essas invariantes conforme o contexto. Não teriam tanto um sentido, mas estruturas que geram sentidos cada vez que a história é reinventada.

Ainda hoje, as histórias maravilhosas dão aquilo que o escritor Italo Calvino considerou ser uma 'explicação geral da vida' que rumina das consciências camponesas aos dias de hoje (Fábulas Italianas, 1992: 15). Elas, escreve Calvino, são uma espécie de 'catálogo do destino', dos momentos em que o ser humano projeta um destino, do nascimento ao afastamento de casa, do crescimento à maturidade e aos desafios que nos confirmam como humanos.

Podemos dizer dos contos maravilhosos o que o antropólogo Claude Lévi-Strauss disse dos mitos: todas as versões integram o mesmo conto. Não há original a prevalecer. Nem versão necessariamente melhor.

O despertar de Branca de Neve

No original, o papel de rainha má e algoz de Branca de Neve cabia à própria mãe, não à madrasta, que só entra na história na 2ª edição. O despertar da heroína tampouco ocorre após um beijo do príncipe. 

Ao vê-la morta, o rapaz nutre a obsessão de levar o caixão para onde quer que vá. Obrigado a carregá-lo, um servo abre o caixão, endireita Branca de Neve e berra: 'Somos amaldiçoados só por sua causa, menina morta', ao que dá um tapa nas costas da moça. É então que o pedaço de maçã sai de sua garganta e Branca de Neve ressuscita.

Estimular a insurgência da patuleia soou inaceitável e, na versão de 1857, a última editada em vida por Wilhelm Grimm, a moça acorda quando um servo derruba o caixão por acidente, deslocando o toco de maçã podre, que estava em sua garganta. 

A transformação do príncipe sapo

Em O Rei Sapo ou O Henrique de Ferro, o sapo falante pede à filha do rei que o leve para sua cama, para dormir. 

'Ao ouvir tais palavras, a filha do rei ficou apavorada, pois tinha nojo do sapo frio, não tinha coragem de tocá-lo, e agora ele queria dormir na cama dela. Ela começou a chorar e se recusou. Furioso, o rei ordenou que ela cumprisse o que havia prometido e não o desonrasse. Não tinha jeito, ela tinha de satisfazer a vontade do pai, mas sentia imensa raiva em seu coração. Pegando o sapo com dois dedos, levou-o ao seu quarto, deitou-se na cama e, em vez de colocá-lo ao lado dela, atirou-o contra a parede, ploft. ''''Pronto, agora você vai me deixar em paz, sapo asqueroso!''''. Mas o sapo não morreu e antes de cair se transformou num belo e jovem príncipe. Este, sim, era seu querido companheiro e, cumprindo a promessa, os dois adormeceram felizes lado a lado.' 

A gravidez de Rapunzel 

O jovem príncipe imita a voz da fada e pede a Rapunzel que jogue seus cabelos para subir à torre.

'De início Rapunzel levou um susto, mas não demorou a gostar tanto do príncipe que combinou que viesse visitá-la todos os dias e ela o puxaria para cima. Assim viveram alegres e a fada não percebeu nada por um bom tempo, até que um dia Rapunzel disse a ela: ''''Sabe, senhora Gothel, as minhas roupas estão tão apertadas que não estão querendo servir mais em mim'''''.

Vendo a gravidez, a fada dá surra em Rapunzel e corta sua trança.

'Depois baniu Rapunzel para um deserto onde ela passou apuros e onde, depois de um tempo, deu à luz gêmeos, um menino e uma menina.'

A fada ainda tenta matar o príncipe, que fica cego.