17 de dez. de 2010

José Saramago: O fator Deus

JOSÉ SARAMAGO

 

Algures na Índia. Uma fila de peças de artilharia em posição. Atado à boca de cada uma delas há um homem. No primeiro plano da fotografia um oficial britânico ergue a espada e vai dar ordem de fogo. Não dispomos de imagens do efeito dos disparos, mas até a mais obtusa das imaginações poderá "ver" cabeças e troncos dispersos pelo campo de tiro, restos sanguinolentos, vísceras, membros amputados. Os homens eram rebeldes.


Algures em Angola. Dois soldados portugueses levantam pelos braços um negro que talvez não esteja morto, outro soldado empunha um machete e prepara-se para lhe separar a cabeça do corpo. Esta é a primeira fotografia. Na segunda, desta vez há uma segunda fotografia, a cabeça já foi cortada, está espetada num pau, e os soldados riem. O negro era um guerrilheiro.

 

Algures em Israel. Enquanto alguns soldados israelitas imobilizam um palestino, outro militar parte-lhe à martelada os ossos da mão direita. O palestino tinha atirado pedras. Estados Unidos da América do Norte, cidade de Nova York. Dois aviões comerciais norte-americanos, sequestrados por terroristas relacionados com o integrismo islâmico, lançam-se contra as torres do World Trade Center e deitam-nas abaixo. Pelo mesmo processo um terceiro avião causa danos enormes no edifício do Pentágono, sede do poder bélico dos States. Os mortos, soterrados nos escombros, reduzidos a migalhas, volatilizados, contam-se por milhares.


As fotografias da Índia, de Angola e de Israel atiram-nos com o horror à cara, as vítimas são-nos mostradas no próprio instante da tortura, da agônica expectativa, da morte ignóbil. Em Nova York tudo pareceu irreal ao princípio, episódio repetido e sem novidade de mais uma catástrofe cinematográfica, realmente empolgante pelo grau de ilusão conseguido pelo engenheiro de efeitos especiais, mas limpo de estertores, de jorros de sangue, de carnes esmagadas, de ossos triturados, de merda. O horror, agachado como um animal imundo, esperou que saíssemos da estupefação para nos saltar à garganta. O horror disse pela primeira vez "aqui estou" quando aquelas pessoas saltaram para o vazio como se tivessem acabado de escolher uma morte que fosse sua. Agora o horror aparecerá a cada instante ao remover-se uma pedra, um pedaço de parede, uma chapa de alumínio retorcida, e será uma cabeça irreconhecível, um braço, uma perna, um abdômen desfeito, um tórax espalmado. Mas até mesmo isto é repetitivo e monótono, de certo modo já conhecido pelas imagens que nos chegaram daquele Ruanda-de-um-milhão-de-mortos, daquele Vietnã cozido a napalme, daquelas execuções em estádios cheios de gente, daqueles linchamentos e espancamentos daqueles soldados iraquianos sepultados vivos debaixo de toneladas de areia, daquelas bombas atômicas que arrasaram e calcinaram Hiroshima e Nagasaki, daqueles crematórios nazistas a vomitar cinzas, daqueles caminhões a despejar cadáveres como se de lixo se tratasse.

 

De algo sempre haveremos de morrer, mas já se perdeu a conta aos seres humanos mortos das piores maneiras que seres humanos foram capazes de inventar. Uma delas, a mais criminosa, a mais absurda, a que mais ofende a simples razão, é aquela que, desde o princípio dos tempos e das civilizações, tem mandado matar em nome de Deus. Já foi dito que as religiões, todas elas, sem exceção, nunca serviram para aproximar e congraçar os homens, que, pelo contrário, foram e continuam a ser causa de sofrimentos inenarráveis, de morticínios, de monstruosas violências físicas e espirituais que constituem um dos mais tenebrosos capítulos da miserável história humana. Ao menos em sinal de respeito pela vida, deveríamos ter a coragem de proclamar em todas as circunstâncias esta verdade evidente e demonstrável, mas a maioria dos crentes de qualquer religião não só fingem ignorá-lo, como se levantam iracundos e intolerantes contra aqueles para quem Deus não é mais que um nome, nada mais que um nome, o nome que, por medo de morrer, lhe pusemos um dia e que viria a travar-nos o passo para uma humanização real. Em troca prometeram-nos paraísos e ameaçaram-nos com infernos, tão falsos uns como outros, insultos descarados a uma inteligência e a um sentido comum que tanto trabalho nos deram a criar.

 

Disse Nietzsche que tudo seria permitido se Deus não existisse, e eu respondo que precisamente por causa e em nome de Deus é que se tem permitido e justificado tudo, principalmente o pior, principalmente o mais horrendo e cruel. Durante séculos a Inquisição foi, ela também, como hoje os talebanes, uma organização terrorista que se dedicou a interpretar perversamente textos sagrados que deveriam merecer o respeito de quem neles dizia crer, um monstruoso conúbio pactuado entre a religião e o Estado contra a liberdade de consciência e contra o mais humano dos direitos: o direito a dizer não, o direito à heresia, o direito a escolher outra coisa, que isso só a palavra heresia significa.

 

E, contudo, Deus está inocente. Inocente como algo que não existe, que não existiu nem existirá nunca, inocente de haver criado um universo inteiro para colocar nele seres capazes de cometer os maiores crimes para logo virem justificar-se dizendo que são celebrações do seu poder e da sua glória, enquanto os mortos se vão acumulando, estes das torres gêmeas de Nova York, e todos os outros que, em nome de um Deus tornado assassino pela vontade e pela ação dos homens, cobriram e teimam em cobrir de terror e sangue as páginas da história. Os deuses, acho eu, só existem no cérebro humano, prosperam ou definham dentro do mesmo universo que os inventou, mas o "fator Deus", esse, está presente na vida como se efetivamente fosse o dono e o senhor dela. Não é um deus, mas o "fator Deus" o que se exibe nas notas de dólar e se mostra nos cartazes que pedem para a América (a dos Estados Unidos, não a outra...) a bênção divina. E foi o "fator Deus" em que o deus islâmico se transformou, que atirou contra as torres do World Trade Center os aviões da revolta contra os desprezos e da vingança contra as humilhações. Dir-se-á que um deus andou a semear ventos e que outro deus responde agora com tempestades. É possível, é mesmo certo. Mas não foram eles, pobres deuses sem culpa, foi o "fator Deus", esse que é terrivelmente igual em todos os seres humanos onde quer que estejam e seja qual for a religião que professem, esse que tem intoxicado o pensamento e aberto as portas às intolerâncias mais sórdidas, esse que não respeita senão aquilo em que manda crer, esse que depois de presumir ter feito da besta um homem acabou por fazer do homem uma besta.


Ao leitor crente (de qualquer crença...) que tenha conseguido suportar a repugnância que estas palavras provavelmente lhe inspiraram, não peço que se passe ao ateísmo de quem as escreveu. Simplesmente lhe rogo que compreenda, pelo sentimento de não poder ser pela razão, que, se há Deus, há só um Deus, e que, na sua relação com ele, o que menos importa é o nome que lhe ensinaram a dar. E que desconfie do "fator Deus". Não faltam ao espírito humano inimigos, mas esse é um dos mais pertinazes e corrosivos. Como ficou demonstrado e desgraçadamente continuará a demonstrar-se.

Língua: O meu Deus

Língua: O meu Deus

28 de nov. de 2010

Lágrimas Ocultas.

Se me ponho a cismar em outras eras
Em que rí e cantei, em que era querida,
Parece-me que foi outras esferas,
Parece-me que foi numa outra vida...
E a minha triste boca dolorida
Que dantes tinha o rir das primaveras,
Esbate as linhas graves e severas
E cai num abandono de esquecida!
E fico, pensativa, olhando o vago...
Toma a brandura plácida dum lago
O meu rosto de monja de marfim...
E as lágrimas que choro, branca e calma,
Ninguém as vê brotar dentro da alma!
Ninguém as vê cair dentro de mim!

(Florbela Espanca)

Dedicatória a alguém especial.

dedicatória para a alessandraAlessandra meu bem, você é a pessoa mais importante da minha vida. Alguém cuja facilidade de compreensão supera a dos psicólogos e psicanalistas. É fácil para si entender-me e, também, se fazer entendida. Você sabe sempre prever os meus atos com sabedoria. Seus julgamentos são sempre justos e, por isso, não há melhor forma de nominá-la, minha caríssima, de juíza justa dos meus valores. Bem sei que tenho me dedicado bastante para fazê-la sofrer, mas você insiste em receber as minhas investidas fatais de forma passiva e esportiva. Não se deixa nunca abater com meus impulsos execráveis e nunca perde a postura. Você está sempre pronta a ajudar-me, não pesa nunca os erros do passado e, permite-me sempre com sua maior estima de amizade ser o seu melhor amigo. Embora hoje não reproduzam as mesmas cores de antes, minha paixão e amor estão sempre eternizados a cada raiar do sol. Hoje a reconheço como meu melhor presente; trago e guardo-a no coração, embalada e enlaçada de lembranças presentes.

27 de out. de 2010

As diferenças culturais: tese – antítese – síntese

A partir da criação de um grupo homogêneo em que se definem povo e cultura, suas leis e bases fortalecidas pela comunhão de uma mesma consciência, há por período longo, uma estabilidade social. A sociedade e seu contrato social vivem num regime chamado de síntese. Não há conflitos; apenas harmonia. Mas a tendência humana é o dinamismo, a evolução; nada se conserva em seu ambiente, não por muito tempo. O ser humano cansa-se; reavalia seus princípios com a finalidade de melhorá-los; nada que se lhe apresenta é definitivo; é inconformado. Imagine uma comunidade formada por pouco mais de cem homens. Esse grupo precisa viver em harmonia, e para isso institui regras de conduta que correspondam a necessidade da vida grupal; O tempo passa, o grupo muda com novas gerações, mas as regras permanecem. O único ponto solto serão as regras. Elas se conservam com a história e a tradição do grupo. Mas o tempo continua passando e afastando as primeiras gerações que criaram o grupo das novas gerações e, com essa separação, acontece algo previsível: a história e a tradição passam a tornar-se obsoletas; a história começa a deturpar-se e a apagar-se para as novas gerações tornando fracas as influências primitivas do grupo. Nesse momento, o contrato social, as leis e bases desse grupo começam a ser contestadas, reavaliadas, mudadas. Passamos para um novo nível: a reconstrução ideológica do grupo.
Não é fácil derrubar os valores entranhados no grupo; o sentimento de confronto e o desejo de mudança serão sentidos, a princípio, por poucos dos participantes desse grupo. Haverá uma insatisfação e inconformismo quanto aos preceitos que regem as suas vidas e, desse modo, tudo se tornará estranho para a nova geração social. Nascerá a intolerância, a discórdia, a desordem, o caos. Uma parte do grupo precisará mudar porque não se adequará mais a sua sociedade. Haverá a separação. A separação do primeiro grupo não será fácil; costuma estar associada a muita batalha, porque nenhuma sociedade quer ver-se dividida; mas logo acontece: ter-se-á dois grupos, um oposto ao outro, defendendo ideais contrários; esse é o ponto chave da evolução de uma sociedade e seus valores. A divisão do grupo que formava uma sociedade uniforme abala toda a sua estrutura, pois ter-se-ia uma mesma sociedade formada por dois grupos com ideias opostas. Não ter-se-á uma cultura, uma identidade, uma lei; mas duas. Nascerá da unidade a multiplicidade e, consequentemente, a liberdade de escolha dos componentes da sociedade entre uma tradicional ou uma nova realidade ideológica.
Uma sociedade formada com ideais opostos não conseguirá viver em harmonia. Haverá muita tentativa de uniformizar e equilibrar a situação, mas essa resposta só virá depois de muitos confrontos e depois que o tempo trabalhar nas mentes dos indivíduos a conciliação das ideias positivas e aproveitáveis do grupo tradicional com as ideias positivas e aproveitáveis do grupo novo. Juntando-se o útil ao agradável, a mesclagem dos valores culturais dos dois grupos dará origem a um novo grupo, mais pacífico e com fácil tendência a assimilar os valores culturais dos dois primeiros grupos. O tempo e a distancia entre os costumes de gerações traduz essa tendência. Ainda que se tenha uma sociedade formada por três grupos e seus costumes, voltará pelo tempo determinado a reinar a harmonia disfarçada pela aceitação e homogeneização dessas culturas. Mas o processo de evolução continua; onde termina uma cultura, outra começa; e vive-se de novo e de novo o mesmo ciclo.