29 de jan. de 2011

“Bullshits”

imageEstou despedaçado. Não tenho mais saco para aturar qualquer pessoa. Dos meus amigos só ouço “conversa pra boi durmir”; das minhas amigas, só vejo compulsão sexual; dos mais velhos, as mesmas reclamações sobre experiências enterradas no passado. Os convites que me são feitos para baladas, noitadas, casamentos, e o “caralho a quatro” não são mais aceites. Tudo tornou-se “bullshit”. Não consigo mais enxergar o valor real do presente. Dia após dia, aguento como posso às humilhações da vida, como ficar na merda de um país detestável por compaixão à família e destruir todo um planejamento fiável de vida no terreno a que me acostumei: Brasil. Nos últimos meses, tenho acordado e desejado não acordar. Sinto sempre o peso de estar com os olhos abertos e não ver nada. São todos os dias iguais: o céu cinza e o dia sufocante. Não há nada que saiba a doce mel ou a morango. Embora me sinta aflito, ocorre-me sempre a idéia fugaz de que o próximo dia será diferente. Eis o pretexto para me levantar religioso e vespertinamente todos os dias. Penso numa primeira frase: “nem todos os dias são santos”, e me pergunto: “qual dia o será?” E, depois, numa segunda frase: “nem todo dia é como hoje, por isso, faça tudo o que quiser fazer”, e, outra vez, me pergunto: “o que fazer?” Ou seja, acordo para olhar o vazio porque sou cego, e não faço nada porque tudo o que se me apresenta é vácuo. Vida boa essa, não?!!!

21 de jan. de 2011

Coração em desalinho.


Estou na varanda de casa, primeiro andar; não há vislumbre, apenas uma singular distração à rua que se me apresenta vaga. Transeuntes, meros rostos desconhecidos, iguais à muitos pelo mundo afora. Há imensidão de detalhes, sinais ao longo que não consigo traduzir. Esforço-me em compreender o que está disposto: árvores compridas e secas, típicas do clima africano; carros, uns passando às pressas, outros estacionados à beira da estrada. É uma rua comum, típica de uma cidade pobre: suja em todos os aspectos, poerenta até mesmo no vigésimo andar dos prédio ao redor, quiilogramas incontáveis de lixo, acervo exagerado e armazém para os roedores. – Quantos roedores! –. Os prédios. Esses, à hora dos meus olhos, tardio se fecham às luzes e sincronizam sua graça com o céu noturno de estrelas reluzentes e uma lua cheia. Os prédios têm as luzes apagadas, com exceção à três janelas acesas. Parecem refletir, em associação à minha busca por significados, dentro do meu campo associativo, o estado de minh'alma. A alma em desalinho imersa na escuridão. Eu, sentado, não percebo ainda o significado da minha vida. Não sei exato o motivo de estar aqui, agora, sentado e escrevendo. Parece um desastre não saber que passo dar e deixar que cada palavra alinhada à outra crie o caminho para um significado qualquer que eu possa usar em detrimento de minha própria busca. As músicas que ouço nesse momento trazem ao meu ouvido a doçura de uma poesia. Consigo refletir e extrair a destreza do compositor e o árduo trabalho empregado para realizar o prazer de tocar aos meus ouvidos as mais belas melodias. As lágrimas caem-me pelo rosto e nada explica o vazio sentimento que me consome. Quero sair, gritar; mas... estou preso. É um labirinto a minha consciência. Ainda estou errando nos caminhos. Quero desistir. Parar de andar, e deixar que a saída me encontre. Posso comparar esse momento a dois ímãs com a mesma polaridade. Ambos se repulsam. Assim como a minha infelicidade em busca do seu contrário. Chocam-se uma e outra. Eu cá com a infelicidade. E lá fora, a feliz idade.

        Sérgio Ventura.

28 de dez. de 2010

Amor obsessivo

Os stalkers vigiam os passos de suas vítimas e transformam a vida da pessoa pela qual têm fixação em um verdadeiro inferno.

Imagine que você não consiga pensar em nada que não tenha relação com determinada pessoa. Seu desejo e desespero são tão intensos que se aproximam da dor física. A ausência do ser amado o impele a escrever páginas e páginas de cartas e a discar seu número de telefone várias vezes ao dia. Por vezes, sentindo que está abandonado ou que ninguém dá atenção à sua dor, é compreensível que surjam ódio e planos de vingança. Em princípio, isso pode parecer apenas sinal de um comportamento irracional demonstrado por uma pessoa apaixonada que não é correspondida. Algo que, de acordo com senso comum, vai passar com o tempo. Mas e se esses sentimentos e comportamento persistirem? E se as tentativas de participar da vida do ser amado se tornarem cada vez mais exageradas e agressivas?

Esse foi o caso de Helene K. , uma fisioterapeuta de 40 anos. Em um fim de semana ela recebeu em casa o telefonema de um ex-paciente. Somente depois de pensar muito, se lembrou de que havia um ano o homem recebera alta da clínica onde ela trabalhava. O rapaz explicou que gostaria de revê-la, mas Helene, delicadamente, deixou claro que não tinha intenção de manter contato com ele. Seguiram-se então cartas com juras de amor e outros telefonemas. Até que um dia o antigo paciente apareceu com as malas feitas diante da porta da casa de Helene dizendo que estava fazendo alterações em sua vida – ele pedira demissão de seu trabalho para passar o maior tempo possível “cuidando dela” e pretendia mudar-se para a casa da terapeuta. Mesmo quando Helene o mandou embora rudemente ele não desistiu: pelo contrário, intensificou a perseguição, passando a vigiar todos os seus passos. A fisioterapeuta, por fim, mudou os números de telefone e obteve uma ordem de restrição do direito civil para garantir que ele fosse preso, caso se aproximasse dela. O admirador reagiu enviando cartas ameaçadoras – e continuou nos calcanhares de Helene, passando a aterrorizar até mesmo seus vizinhos.

CAÇADOR À ESPREITA

O fenômeno da perseguição excessiva ganhou atenção da mídia apenas há aproximadamente 20 anos, devido a alguns casos de assédio a famosos, como o da tenista Steffi Graf (ver quadro). Psicólogos e psiquiatras, porém, conhecem essa ameaça há mais tempo: no século XIX, um dos pais da psiquiatria forense, Richard von Krafft-Ebing, já escrevera sobre mulheres com fixação obsessiva que viajavam atrás de atores que idolatravam. Nos anos 80, a erotomania – também chamada síndrome de Clérambault – foi classificada como distúrbio psíquico. Quem sofre dessa patologia parte do princípio irremovível de que é amado pela outra pessoa – mesmo que não haja nenhum motivo para que chegue a essa conclusão. O esforço incessante de entrar em contato com alguém é considerado uma das principais características da erotomania. Para abordar esse comportamento costuma-se usar a expressão em inglês stalking, um termo relacionado à caça, que indica uma forma sorrateira de se aproximar da presa.

Da mesma forma, um stalker cerca sua vítima e procura não perdê-la de vista. Mesmo diante da rejeição explícita, ele insiste na aproximação – seja por telefone, carta, e-mail ou diretamente. Alguns enviam presentes ou objetos bizarros, às vezes assustadores, como colagens de fotos com caveiras no lugar dos rostos. Por vezes, fazem encomendas em nome da pessoa que perseguem, simplesmente com a intenção de difamá-la. Um em cada cinco stalkers se torna agressivo em algum momento, podendo voltar-se violentamente contra a vítima, seus parentes próximos ou conhecidos ou mesmo seu animal de estimação.

Embora as motivações amorosas dos stalkers sejam as mais frequentes, os perseguidores não se restringem a elas. Podem ser movidos, por exemplo, pelo desejo de vingança. Ex-parceiros íntimos, em geral, representam o maior e mais perigoso grupo de stalkers. Alguns deles têm autoestima instável, mostram indícios de distúrbios
de personalidade narcisista ou borderline, mesmo que não tenham recebido esses diagnósticos. A maioria dos ex-parceiros perseguidores sabe que é malvista pelos seus atos.

No entanto, para eles isso ainda é melhor do que serem ignorados.

O ex-namorado de Bettina M., por exemplo, começou a controlar a secretária de 28 anos mesmo antes de terminarem o relacionamento. Ambos trabalhavam no mesmo local; ele, muito ciumento, não queria que ela falasse com colegas. Por fim, a moça se separou depois de três meses – mas continuou encontrando o rapaz na empresa. Ele descobriu a senha do e-mail da ex-parceira e passou a acompanhar sua correspondência. Ele também entrou em um dos fóruns online de que a secretária participava e anunciou o suicídio de Bettina. E passou a bombardeá-la com mensagens SMS – o tom era ora suplicante, ora ameaçador e, por vezes, simpático. Após seis meses, ela arrumou um novo namorado, mas seu perseguidor se manteve espionando o casal e enviando mensagens regularmente.

O que leva uma pessoa a ter esse comportamento? Entre 2002 e 2005, nosso grupo de trabalho, coordenado por Hans-Georg Vo, na Universidade Técnica de Darmstadt, na Alemanha, realizou o primeiro estudo sobre essa questão. Entrevistamos 100 stalkers que nos contataram anonimamente pela internet. Revelou-se uma percepção bastante distorcida: apesar de suas tentativas de aproximação não terem sucesso, quatro em cada cinco perseguidores declararam que queriam continuar no encalço. O motivo mais alegado por eles foi o fato de estarem ligados ao outro “pelo destino”. Um terço dos entrevistados estava convencido, de forma onipotente, de que devia superar a resistência de sua vítima, pois ela própria, no fundo, queria isso. Outro terço sentia-se obrigado a cuidar da pessoa amada. Essas declarações trazem uma evidência: quem entra na mira de um stalker pode rejeitar as tentativas de contato seja o quanto for – o ofensor não aceitará as recusas.

EXCESO DE DOPAMINA

Nossas entrevistas mostraram que o próprio stalker em geral se sente profundamente infeliz.

Mais de 60% deles se sentiam deprimidos. Um em cada três sofria de estados de
ansiedade e eram acompanhados por médico ou psicólogo. Quase 40% declararam ser reincidentes. O psicólogo Reid Meloy, da Universidade da Califórnia em San Diego, e a antropóloga Helen Fischer, da Universidade Rutgers em New Jersey, descobriram em 2005 alterações relevantes na química cerebral dos stalkers. Eles perceberam que, após uma rejeição, os afetados permaneciam confinados em uma espécie de círculo vicioso. Motivo possível: excesso constante de dopamina, substância mensageira da motivação – o que, segundo Fisher, não é raro em pessoas que estão sofrendo por amor. “Claro que há questões psíquicas envolvidas, mas do ponto de vista orgânico, mal o objeto do desejo desaparece, é reforçada a atividade nesses circuitos cerebrais que geram a sensação de admiração intensa”, diz a pesquisadora. A dopamina é o combustível principal para a motivação e representa o sentimento de desejo no cérebro. Ao mesmo tempo, o nível de serotonina em stalkers é muitas vezes baixo, o que estimula estados de depressão e ansiedade.

Enquanto as pesquisas relacionadas aos motivos que impulsionam os ofensores já estão sendo desenvolvidas há algum tempo, estudos a respeito dos efeitos do stalking sobre as vítimas são relativamente novos. Em 1998, Patricia Tjaden e Nancy Thoenness, do Center for Policy Research, em Denver, desenvolveram o estudo mais representativo até o momento sobre essa questão: 8% das mulheres e 2% dos homens nos Estados Unidos já foram, pelo menos uma vez, assediados de forma intensa, a ponto de temer pela própria segurança ou pelo bem-estar de pessoas próximas. O pesquisador Harald Dressing, da Universidade de Mannheim, realizou em 2004 um estudo na Alemanha, considerando também casos mais leves, e concluiu que um em cada oito alemães já foi “perseguido” alguma vez.

Diferentemente de pessoas que sofrem por eventos pontuais, as vítimas de stalking se confrontam de forma constante com o objeto de seu medo. Às vezes, são obrigadas a lidar com seus torturadores no dia a dia. Se o telefone toca, pensam automaticamente que pode ser o perseguidor. Nessa atmosfera de medo e perplexidade, esquecem o que é ter uma vida “normal”.

Entre 2002 e 2004, nosso grupo entrevistou um total de 550 vítimas de stalking. Entre os voluntários, 85% eram mulheres, e a maioria revelou um histórico de muito sofrimento: em média, no momento da entrevista, a perseguição já durava 28 meses. Em
um caso extremo, se prolongava por 30 anos. O estudo mostrou que as vítimas eram importunadas ou ameaçadas, em média, em três a quatro locais de sua vida rotineira. Por exemplo, no bar ou restaurante que costumavam frequentar, no supermercado perto de casa, na academia de ginástica ou no trabalho. Porém, o local mais comum era em casa – o que parecia ainda mais perturbador. Várias vítimas reagiam se isolando do mundo externo – viviam, por exemplo, com as janelas fechadas a maior parte do tempo. Muitas mandaram instalar fechaduras mais seguras, adquiriram números de telefone que compartilhavam apenas com poucas pessoas e passaram a evitar sair de casa. Isso teve um efeito dramático sobre sua vida social: as vítimas se afastaram visivelmente da família e de amigos, e muitas enfrentaram dificuldades com o parceiro. Uma em cada cinco vítimas acabou mudando de casa, e um em cada dez entrevistados pediu demissão do emprego.

Foi o que aconteceu com Bettina M. Ela não suportava mais encontrar o seu importunador todos os dias, vivia tensa e chegou a ser suspensa por causa de suas queixas constantes. Como se não bastasse, o chefe mostrou-se compreensivo com a decepção amorosa do perseguidor e censurou Bettina por sua “incompreensão”. Em seguida, ela obteve uma medida cautelar contra o stalker e iniciou um tratamento psicológico. Por enquanto, ele ainda mantém a “distância segura” determinada judicialmente. Mesmo assim, a moça vive com o medo constante de que ele apareça de repente ou a ameace. No momento, ela está fazendo psicoterapia e espera encontrar um novo emprego.

FIXAÇÃO PELAS ESTRELAS

Quase todos os perseguidores de pessoas famosas se iludem e idealizam a possibilidade de se aproximar de seu ídolo, colocando sobre ele uma série de projeções. A maioria dos stalkers de famosos, de certa forma “vampiros de identidades”, querem estar perto o suficiente para apropriar-se de características que os atraem. Um exemplo é Günther P., durante anos obcecado pela tenista alemã Steffi Graf. Em 1993 ele cometeu um atentado contra outra jogadora, Monica Seles, concorrente da esportista. Graf não era a primeira personalidade que Günther idolatrava – ele já havia se fixado no papa João Paulo II . Sua obsessão pela tenista começou em 1985, quando a viu em um programa de televisão. A partir de então, passou a escrever cartas para ela e para sua mãe. Chegou a mandar-lhe dinheiro, forrou as paredes de seu quarto com fotos gigantescas da moça e não perdia nenhum de seus jogos. Ela era para ele “uma criatura de sonhos, com olhos de diamantes e cabelos de seda brilhantes”. Via nela características virtuosas, como “limpeza, sinceridade e pureza”. Mais tarde, psicólogos identificaram um distúrbio de personalidade narcisista em Günther P. O problema teria relação com a falta de atenção dos pais durante a infância. Seu objetivo ao tentar estabelecer uma ligação com Graf era fortalecer a própria identidade.

Quando a tenista foi derrotada por Monica Seles em 1990, durante o German Open, o mundo dele veio abaixo. “Isso me abalou tão fortemente que pensei em tirar minha própria vida”, contou mais tarde. Em abril de 1993, cometeu o atentado: cravou uma faca nas costas de Seles. Sua intenção era que sua adorada voltasse a ser a número um no ranking do tênis mundial.
Na divisão de psicologia forense de Darmstadt foi realizado o primeiro estudo sobre stalking de pessoas públicas em países de língua alemã. Para tanto, 53 personalidades conhecidas das áreas de entretenimento e da mídia foram entrevistadas. Mostrou-se que cerca de 80% delas já haviam estado na mira de um perseguidor pelo menos uma vez na vida – uma frequência aproximadamente oito vezes mais alta do que na média da população. A idade ou o sexo das estrelas não influenciavam o fato de serem alvo de perseguição obsessiva. Na verdade, foi muito mais decisiva a frequência com que aparecia na mídia. Aqueles que expõem sua vida privada, portanto, estão sob maior risco. São a essas pessoas que os stalkers se “apegam” com mais facilidade.

VERGONHA E CULPA

A maioria dos entrevistados por nós também desenvolveu, com o tempo, sintomas físicos e psíquicos. Vários se envergonhavam do ocorrido ou até mesmo se culpavam. Dois terços dos entrevistados sofriam de ataques de pânico, dificuldades de concentração, depressão ou distúrbios alimentares ou de sono. O estresse constante, além disso, era a causa de irritação, acessos de raiva e agressividade. Mesmo nos casos em que a situação de stalking havia chegado ao fim, os estados de ansiedade quase sempre se mantinham. Um em cada quatro entrevistados declarou já ter pensado em se matar ou mesmo já ter realizado uma tentativa concreta de suicídio.

Esses exemplos mostram que os perseguidores adquirem um poder fatal sobre a vida de suas vítimas, apesar de poucas vezes chegarem a agressões físicas. No entanto, em um de cada cinco casos, o ofensor utiliza violência física, não recuando diante de surras, ataques com armas ou mesmo tentativas de assassinato. Segundo uma análise do psicólogo Reid Meloy, para vítimas de stalking o risco de ser assassinadas é 50 vezes mais alto do que para a média da população. Nesse caso, ex-parceiros são os mais vulneráveis: e quanto mais intenso foi o relacionamento entre vítima e stalker, maior é o risco.

Em geral, porém, a situação não se agrava sem aviso prévio. Em todos os casos, o aconselhável é não lidar com o problema sozinho, mas buscar apoio psicológico e registrar um boletim de ocorrência. Tribunais de direito civil podem emitir uma proibição de aproximação e contato, mas, em geral um em cada cinco casos, isso desencadeia um perigoso agravamento, pois a vítima insulta o stalker, de certa forma, publicamente. Para alguns, a violência torna-se então a única possibilidade de compensar o orgulho ferido ou o desespero. De qualquer forma, vale lembrar que, apesar do risco, denúncias podem interromper a ação de ofensores, e terapias que tornem a vítima mais apta a se proteger, inclusive psiquicamente, oferecem suporte durante a situação de sofrimento, ajudando a pessoa a compreender as próprias questões, em geral antigas, que de alguma forma podem ter contribuído para essa situação.

Cientific Americam: Mente e Cérebro. Disponível em: <http://www2.uol.com.br/vivermente/reportagens/amor_obsessivo_6.html>. Acesso em 28 de dezembro de 2010.

17 de dez. de 2010

José Saramago: O fator Deus

JOSÉ SARAMAGO

 

Algures na Índia. Uma fila de peças de artilharia em posição. Atado à boca de cada uma delas há um homem. No primeiro plano da fotografia um oficial britânico ergue a espada e vai dar ordem de fogo. Não dispomos de imagens do efeito dos disparos, mas até a mais obtusa das imaginações poderá "ver" cabeças e troncos dispersos pelo campo de tiro, restos sanguinolentos, vísceras, membros amputados. Os homens eram rebeldes.


Algures em Angola. Dois soldados portugueses levantam pelos braços um negro que talvez não esteja morto, outro soldado empunha um machete e prepara-se para lhe separar a cabeça do corpo. Esta é a primeira fotografia. Na segunda, desta vez há uma segunda fotografia, a cabeça já foi cortada, está espetada num pau, e os soldados riem. O negro era um guerrilheiro.

 

Algures em Israel. Enquanto alguns soldados israelitas imobilizam um palestino, outro militar parte-lhe à martelada os ossos da mão direita. O palestino tinha atirado pedras. Estados Unidos da América do Norte, cidade de Nova York. Dois aviões comerciais norte-americanos, sequestrados por terroristas relacionados com o integrismo islâmico, lançam-se contra as torres do World Trade Center e deitam-nas abaixo. Pelo mesmo processo um terceiro avião causa danos enormes no edifício do Pentágono, sede do poder bélico dos States. Os mortos, soterrados nos escombros, reduzidos a migalhas, volatilizados, contam-se por milhares.


As fotografias da Índia, de Angola e de Israel atiram-nos com o horror à cara, as vítimas são-nos mostradas no próprio instante da tortura, da agônica expectativa, da morte ignóbil. Em Nova York tudo pareceu irreal ao princípio, episódio repetido e sem novidade de mais uma catástrofe cinematográfica, realmente empolgante pelo grau de ilusão conseguido pelo engenheiro de efeitos especiais, mas limpo de estertores, de jorros de sangue, de carnes esmagadas, de ossos triturados, de merda. O horror, agachado como um animal imundo, esperou que saíssemos da estupefação para nos saltar à garganta. O horror disse pela primeira vez "aqui estou" quando aquelas pessoas saltaram para o vazio como se tivessem acabado de escolher uma morte que fosse sua. Agora o horror aparecerá a cada instante ao remover-se uma pedra, um pedaço de parede, uma chapa de alumínio retorcida, e será uma cabeça irreconhecível, um braço, uma perna, um abdômen desfeito, um tórax espalmado. Mas até mesmo isto é repetitivo e monótono, de certo modo já conhecido pelas imagens que nos chegaram daquele Ruanda-de-um-milhão-de-mortos, daquele Vietnã cozido a napalme, daquelas execuções em estádios cheios de gente, daqueles linchamentos e espancamentos daqueles soldados iraquianos sepultados vivos debaixo de toneladas de areia, daquelas bombas atômicas que arrasaram e calcinaram Hiroshima e Nagasaki, daqueles crematórios nazistas a vomitar cinzas, daqueles caminhões a despejar cadáveres como se de lixo se tratasse.

 

De algo sempre haveremos de morrer, mas já se perdeu a conta aos seres humanos mortos das piores maneiras que seres humanos foram capazes de inventar. Uma delas, a mais criminosa, a mais absurda, a que mais ofende a simples razão, é aquela que, desde o princípio dos tempos e das civilizações, tem mandado matar em nome de Deus. Já foi dito que as religiões, todas elas, sem exceção, nunca serviram para aproximar e congraçar os homens, que, pelo contrário, foram e continuam a ser causa de sofrimentos inenarráveis, de morticínios, de monstruosas violências físicas e espirituais que constituem um dos mais tenebrosos capítulos da miserável história humana. Ao menos em sinal de respeito pela vida, deveríamos ter a coragem de proclamar em todas as circunstâncias esta verdade evidente e demonstrável, mas a maioria dos crentes de qualquer religião não só fingem ignorá-lo, como se levantam iracundos e intolerantes contra aqueles para quem Deus não é mais que um nome, nada mais que um nome, o nome que, por medo de morrer, lhe pusemos um dia e que viria a travar-nos o passo para uma humanização real. Em troca prometeram-nos paraísos e ameaçaram-nos com infernos, tão falsos uns como outros, insultos descarados a uma inteligência e a um sentido comum que tanto trabalho nos deram a criar.

 

Disse Nietzsche que tudo seria permitido se Deus não existisse, e eu respondo que precisamente por causa e em nome de Deus é que se tem permitido e justificado tudo, principalmente o pior, principalmente o mais horrendo e cruel. Durante séculos a Inquisição foi, ela também, como hoje os talebanes, uma organização terrorista que se dedicou a interpretar perversamente textos sagrados que deveriam merecer o respeito de quem neles dizia crer, um monstruoso conúbio pactuado entre a religião e o Estado contra a liberdade de consciência e contra o mais humano dos direitos: o direito a dizer não, o direito à heresia, o direito a escolher outra coisa, que isso só a palavra heresia significa.

 

E, contudo, Deus está inocente. Inocente como algo que não existe, que não existiu nem existirá nunca, inocente de haver criado um universo inteiro para colocar nele seres capazes de cometer os maiores crimes para logo virem justificar-se dizendo que são celebrações do seu poder e da sua glória, enquanto os mortos se vão acumulando, estes das torres gêmeas de Nova York, e todos os outros que, em nome de um Deus tornado assassino pela vontade e pela ação dos homens, cobriram e teimam em cobrir de terror e sangue as páginas da história. Os deuses, acho eu, só existem no cérebro humano, prosperam ou definham dentro do mesmo universo que os inventou, mas o "fator Deus", esse, está presente na vida como se efetivamente fosse o dono e o senhor dela. Não é um deus, mas o "fator Deus" o que se exibe nas notas de dólar e se mostra nos cartazes que pedem para a América (a dos Estados Unidos, não a outra...) a bênção divina. E foi o "fator Deus" em que o deus islâmico se transformou, que atirou contra as torres do World Trade Center os aviões da revolta contra os desprezos e da vingança contra as humilhações. Dir-se-á que um deus andou a semear ventos e que outro deus responde agora com tempestades. É possível, é mesmo certo. Mas não foram eles, pobres deuses sem culpa, foi o "fator Deus", esse que é terrivelmente igual em todos os seres humanos onde quer que estejam e seja qual for a religião que professem, esse que tem intoxicado o pensamento e aberto as portas às intolerâncias mais sórdidas, esse que não respeita senão aquilo em que manda crer, esse que depois de presumir ter feito da besta um homem acabou por fazer do homem uma besta.


Ao leitor crente (de qualquer crença...) que tenha conseguido suportar a repugnância que estas palavras provavelmente lhe inspiraram, não peço que se passe ao ateísmo de quem as escreveu. Simplesmente lhe rogo que compreenda, pelo sentimento de não poder ser pela razão, que, se há Deus, há só um Deus, e que, na sua relação com ele, o que menos importa é o nome que lhe ensinaram a dar. E que desconfie do "fator Deus". Não faltam ao espírito humano inimigos, mas esse é um dos mais pertinazes e corrosivos. Como ficou demonstrado e desgraçadamente continuará a demonstrar-se.

Língua: O meu Deus

Língua: O meu Deus